Para quem está de fora,
não passa de um conjunto amorfo e indistinto de mendigos e maltrapilhos,
doentes e viciados, reunidos no único intuito de usar e abusar, de forma
consciente e coletiva, de uma substância psicoativa: o crack. Ledo engano.
A cracolândia, assim como a drogadição, além de revelar o drama de milhares de
pessoas, expõe em plena luz do dia, a céu aberto, as feridas e mazelas de uma
sociedade doente e carente, tanto de valores como de afetos.
Os usuários enfileirados
acendem seu cachimbo e, com ele, a esperança de encontrarem um novo mundo, uma
nova ordem, um novo dia. Diante dos holofotes, os políticos juram estar
preocupados com o bem estar físico e mental dos usuários. Garantem que irão
fazer distinção entre usuários e traficantes, e que os dependentes irão receber
tratamento digno e humano.
As imagens revelam o
contrário. O Estado não interveio com médicos, enfermeiros e terapeutas,
e os veículos utilizados não foram ambulâncias. O que se viu foi a ação de uma
polícia truculenta, violenta e despreparada. Sob uma chuva de balas de borracha
e bombas de efeito moral, o grande aglomerado de farrapos humanos foi duramente
reprimido e dispersado. Entre cassetetes, coturnos e escudos, os usuários
evadiam-se espavoridos, abandonando seus parcos pertences e, mais uma vez,
deixando para trás o essencial: sua própria humanidade.
O problema é complexo e
de difícil solução. Seria muita ingenuidade pensar que somente amor e boa
vontade seriam suficientes para acabar com o "fluxo" e convencer os
usuários a abandonar as ruas e ter outra vida. A internação compulsória aparece
como medida urgente, extrema e realmente necessária. É uma bela tentativa de se
fazer algo por alguém que se mostra incapaz de fazer por si mesmo. Apesar de
muitos negarem e não aceitarem o tratamento, vários querem e pensam em parar, porém
poucos de fato conseguem.
Para quem atingiu o fundo
de poço nestas condições é realmente muito difícil visualizar a luz no fim do
túnel. Abandonaram e foram abandonados, primeiro por si mesmos, depois
pela família e pela sociedade. A pior perda ocasionada pelo crack é a das
escolhas. O indivíduo perde a capacidade de decisão, de ir ou não por aquele
caminho e direção. Para quem nunca vivenciou na pele o drama da dependência
pode parecer difícil ou até mesmo impossível aceitar e concordar com este tipo
de afirmação, mas posso garantir: é o que acontece.
É a parte doente mais
visível da sociedade. É a ala dos loucos e desvalidos, dos excluídos e
marginalizados, que com suas próprias mãos cavaram sua ruína e seu poço. São
sim, responsáveis pela escuridão em que hoje se encontram, mas nestes casos de
extremo desacerto e penúria, qualquer juízo emitido com o único propósito de
julgar e condenar, em nada ajuda, apenas rotula e segrega.
Assim como a recuperação
não acontece de um dia para o outro, seria muita ignorância, para não dizer
tolice e bobagem, acreditar que o fim da cracolândia se desse de forma rápida e
eficaz. O imediatismo que move as massas ainda irá nos levar de encontro as
mais ridículas e bizarras ações. Curioso notar que este comportamento é
diariamente alimentado por muitos políticos e jornalistas, que sobrevivem à
custa da desgraça e sofrimento alheio.
O ideal seria fazer um
levantamento de todas as pessoas envolvidas e ligadas diretamente a esta
realidade. Uma coisa seria contar com a ajuda e auxílio da polícia militar;
outra, fazer da mesma, o pivô do processo de “limpeza”. Além da discussão da
legalização ou não das drogas, uma coisa é certa: passamos da hora de descriminalizá-la.
Enquanto a cracolândia for vista e tratada como assunto de polícia,
infelizmente nada será feito ou realizado em benefício do usuário.
Apesar das dificuldades e
empecilhos encontrados, como preconceito e desinformação, é necessário
aprofundarmos nosso olhar para enxergarmos um aglomerado de pessoas doentes e
necessitadas de apoio e atenção. Reféns de uma vida insana e disfuncional,
ninguém se encontra ali por que quer e gosta, além dos traficantes, é claro,
que lucram com o vício e desespero de milhares.
Verdade seja dita: o
problema é amplo, e vai além da oferta ou não do tratamento e da aceitação ou
não do usuário. Muitos não tem nada além da roupa do corpo, um chinelo e
cobertor. Não quero pintar um quadro com as trágicas cores do vitimismo e da
auto piedade, mas recomeçar do zero é um grande desafio.
Para quem não perdeu as
referências familiares, é difícil, mas para quem não tem com quem contar, é
quase impossível. Como convencer a pessoa a interromper o uso se o seu retorno
à rua, na miséria, é inevitável? Acreditamos mesmo na hipótese dos mendigos
limpos e saudáveis, desejando ardentemente viver nestas condições? Querer é poder, desde que o morador de rua, o
viciado e o excluído, não seja eu, nem você.
0 comentários:
Postar um comentário